segunda-feira, 4 de agosto de 2014

Discutindo D&D (1) – AD&D e Desvendando THAC0 e CA

Um guerreiro cercado de inimigos, inabalável
- Entendendo o combate em AD&D -
 (Resumo TL;DR)

. Combate em AD&D e versões antigas de D&D eram uma abstração, não uma simulação da realidade. Uma rodada de combate representava 1 minuto no mundo de jogo.

. A ação de um personagem não indicava a única ação que ele fazia num turno, mas o foco de sua atenção. Num turno, um personagem fazia inúmeras ações que, na maioria das vezes, ficavam sub-entendidas.

. A THAC0 representava a habilidade, técnica, sorte, posicionamento, força, alcance, estamina e todas as qualidades necessárias que tornariam uma pessoa num bom lutador e capaz de desferir golpes num turno.

. CA representa sua capacidade de resistir ao impacto, de antever movimentos do oponente, a extensão do quanto a sua armadura protege em todo o corpo, quão resistente é o material, o quão difícil é acertar o alvo (em termos de tamanho e velocidade de movimento) e o quão grossa for a camada da armadura (dependendo do tamanho do ser).

!Como sempre, não se esqueça de comentar para que possamos aumentar a discussão!

><><

Venho neste post (e talvez em outros futuros) discutir algo que acho muito necessário, pelo menos para quem ainda jogue sistemas Old School ou que leia sobre eles. Já ouvi diversas vezes – e creio que tenham muitos de vocês também ouvido – a colocação sobre o realismo (ou falta de realismo) no combate de D&D, em especial das edições antigas (AD&D e OD&D). A crítica mais comum está relacionada ao modo de combate com rolagem de ataque ('como um guerreiro humano de 1,80 pode enfrentar um colosso de ferro de 30 metros de altura? O colosso simplesmente o chutaria para longe!); ao modo de dano ('guerreiro com 100 pvs pode perder 99 e continuar bem; ficou em 0, agora está morrendo!'); e ao modo como funciona a armadura ('nenhuma armadura deixa mais difícil alguém de ser acertado; ela reduz o dano que se recebe!'). Muitos respondem à esta crítica dizendo ser o D&D um sistema de 'combates heróicos e épicos', e que, portanto, não se importam tanto com o realismo.

Mesmo assim, quando encaramos as edições antes da 3a, vemos coisas que são consideradas absurdas, mesmo para um 'combate heróico'. Por exemplo, em AD&D, não se pode fazer ataques localizados e mirados – a não ser que você use regras complementares nos módulos de combate ou guia do guerreiro. Outro exemplo se encontra no fato de que a Destreza conferia bônus na CA mesmo se o usuário trajar uma armadura pesada como uma armadura completa. Esse é um nível de incoerência tão grande com a realidade que, mesmo para jogadores contemporâneos de D&D, parece tornar o combate em AD&D numa situação extremamente abstrata e difícil de se identificar.

Aí está a questão: o combate em AD&D não é incoerente com suas regras; e (numa opinião pessoal), acredito que ele seja até mais realista que o combate em D&D 3a edição; e, quem sabe, ainda mais realista que o combate em Gurps (talvez eu esteja exagerando aqui, ha!). Pois então, eu pretendo esclarecer, nesse post, essa duas questão ao analisar os dois pontos principais do combate em AD&D: a THAC0 ('To hit armor class 0', ou 'para atingir classe de armadura 0'), o valor usado para ataques em AD&D; e a CA (categoria de armadura), o valor usado para determinar defesas de ataques em AD&D.

Antes de mais nada, como estou falando de AD&D, estarei usando estatísticas descendentes para THAC0 e CA – isto é, quanto menor o valor, melhor. Assim, THAC0 13 equivaleria e Ataque +7, e CA -4 equivaleria a CA 24. Eu irei escrever em parênteses o valor que seria a contraparte ascendente, mais usada hoje em dia. Portanto, THAC0 11 (+9), CA 4 (+6), etc.

A primeira coisa de que gostaria de falar, antes mesmo de discutir sobre a THAC0 e a CA, é sobre o quanto dura uma Rodada em AD&D, um detalhe muitas vezes esquecido por muitos jogadores – mesmo Old School. Na maioria dos rpgs contemporâneos, uma rodada de combate (o tempo que demora para todos agirem) gira em torno de 5-10 segundos; em Gurps, o turno (ação de um jogador) é de 1 segundo; em D&D 3a, a rodada é 6 segundos. Em AD&D, a rodada de combate não é nem 5 nem 10 segundos. Ela é de 1 MINUTO. Sim, 1 minuto, ou 60 segundos, ou 60 vezes mais demorada que em gurps, 10 vezes mais que em D&D 3a.

Portanto, o primeiro ponto que deve ser esclarecido é que o combate em AD&D não era uma tentativa de simular a realidade, mas sim uma abstração. Quando você declarava sua ação em AD&D, não queria dizer que seu personagem faria SOMENTE aquilo, mas que iria FOCAR naquilo. Beber uma poção indicava que ele iria tirar a poção da mochila, desviar dos ataques que recebia, aparar outros, olhar em volta, esperar uma oportunidade, tirar a presilha e só então beber o líquido, enquanto ainda desvia de mais ataques e observa o caos da luta.

Daí podemos ver o que constituía a THAC0. Ela representava a habilidade, técnica, sorte, posicionamento, força, alcance, estamina e todas as qualidades necessárias que tornariam uma pessoa num bom lutador e capaz de desferir golpes num turno. Por isso um Troll, mesmo sem qualquer treinamento, poderia ter um bom THAC0 13 (+7), equivalente a um guerreiro de 7o nível. Sua ferocidade, tamanho, alcance, força e brutalidade contavam. Testar a THAC0 não indicava fazer somente UM ataque, mas sim uma série de golpes, fintas, movimentos, rolamentos, bloqueios, aparos, desvios, esquivas e, no caso de um acerto, o dano representa todo o cumulativo de ferimentos que o guerreiro conseguiu causar. De certa forma, era até comum narrar as piruetas que seu guerreiro fazia no combate – rolando, aparando, atacando – pois a rolagem da THAC0 era apenas o resumo mecânico da intenção do jogador.

Por isso AD&D antigo não tinha regras para ataques localizados. De certa forma, a própria jogada de dano indicava se você teria ferido o alvo de maneira crítica ou não. Com uma espada longa de dano 1d8, caso você tirasse '1' poderia indicar apenas cortes e arranhões, enquanto que um '8' poderia ser uma decapitação. O próprio 'crítico em 20' era uma ideia que Gygax (um dos criadores do sistema D&D) repudiava – mas que acabou sendo acatada pela maioria dos jogadores.

E, da mesma forma que a THAC0, a CA não era somente a dureza da armadura nem a esquiva de um personagem. Ela representa sua capacidade de resistir ao impacto, de antever movimentos do oponente, a extensão do quanto a sua armadura protege em todo o corpo, quão resistente é o material, o quão difícil é acertar o alvo (em termos de tamanho e velocidade de movimento) e o quão grossa for a camada da armadura (dependendo do tamanho do ser). Enfim, tudo que possa dificultar em ser atingido com um golpe que cause ferimentos. Daí a base da CA ser 10, pois indica um adversário que esteja plena e ativamente tentando esquivar e evitar golpes, ou se movimentando em combate. Alguém completamente indefeso poderia ter CA 15 (5) ou mesmo 20 (0). Em função disso, o bônus de Destreza era aplicável mesmo se o usuário estivesse com uma armadura pesada, pois ela indicava também o reflexo e a capacidade de se mover independente de estar pesado ou não.

Fogo Fátuo (Will o' wisp)
 versão macabra de AD&D
Por essas razões é que uma baleia, em AD&D, tem CA 4 (16). Isso não quer dizer que, ao errar um ataque, você não estaria 'acertando' a baleia, mas sim que, devido ao tamanho da criatura, seu ataque não causou qualquer forma expressiva de dano. Caso seu objetivo seja somente tocar a baleia, você talvez nem precisaria rolar para isso – pois a jogada de THAC0 só era usada quando você estava em combate e ativamente querendo ferir o adversário. Também é interessante ressaltar of Fogos Fátuos, com CA -8 (28), cuja armadura extremamente forte se dá por sua incrível velocidade, capacidade de manobra, composição física (seres feitos praticamente de luz), tamanho pequeno e pelo incômodo que podem causar aos atacantes devido à sua forma luminosa
e elétrica.



Fogo Fátuo (Will o' wisp)
em OD&D
Espero ter esclarecido – tanto para jogadores antigos quanto novos – esse ponto de debate sobre 'realismo em D&D' e ter elucidado a questão da Rodada de Combate, da THAC0 e da CA. Próximos posts eu posso discutir outro ponto de debate: os pontos de vida e a relação destes com as jogadas de salvamento de AD&D.


Até lá,

Valete fratres!

8 comentários:

  1. Muitos dos aspectos de critica (tipo "ah, ele caiu de 50 metros e nao morreu pq ainda tem PV") surgem pela falta de conhecimento no sistema, falta de leitura do sistema, e mais comum, falta de puro bom senso. como comentei na sua outra postagem, é comum hj em dia q os jogadores esperem q o livro diga tudo.

    antigamente nao precisava dizer q se vc caisse de m penhasco, vc morria (apesar de algumas edições antigas falarem). hj as pessoas querem tudo mastigado (nao todas, claro. nao quero generalizar).

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  2. To com uma dúvida: Se o jogador fala: Eu tento cravar as minhas duas adagas na cabeça do inimigo para tentar destroçar seu cérebro. Rolagem: acertou, 12 de dano.

    Porque o inimigo esta vivo se ele acabou de ter o cérebro destruído?

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    1. Depende. Se o inimigo for um zumbi, pode até ser.

      Normalmente, narra-se a intenção de maneira genérica - dizendo como você brada a espada, desvia, caminha, se porta, grita - e o que você pretende fazer: "Avanço contra eles gritando o nome de meu deus e bradando o meu montante, atacando a lateral onde o escudo nao estiver protegendo", por exemplo.

      No seu exemplo, o mestre terá que observar. Quantos pvs tem o monstro? 14? Então o ataque, apesar de não ter destruído o cérebro, poderá ter rompido o crânio - a criatura iria gritar, esperniar, urrar. Agora, e se for um lendário senhor da guerra Gnoll com 40 pvs? O ataque terá atingido a cabeça e feito um rasgo, mas nada letal. Se quiser, pode ainda dizer que - 'as lâminas atravessam o elmo do monstro e descem riscando a sua face, cegando seu olho esquerdo'.

      Entendeu?

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    2. Neste caso, faça com que o alvo faça um teste vs. Morte antes de rolar o dano. O mestre pode usar certos detalhes da regra para fazer com que momentos assim não fiquem tão absurdos. =P

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    3. Há uma grande diferença entre o que o jogador diz que o personagem tenta fazer e o que o personagem realmente consegue, em AD&D os pontos de vida também repesentam sorte e experiência para evitar que um golpe atinja um ponto vital e o combate é mais descritivo que nas outras edições. No exemplo do golpe na cabeça, o jogador anunciou a intenção do personagem, este desferiu um ataque e conseguiu acertar a cabeça do oponente, mas o oponente reagiu amortecendo o golpe ou desviando a tempo suma cabeça aponto de ficar com com sérios cortes no rosto... ou talvez apenas arranhões, dependendo de qntos pvs ele tenha.

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    4. Se o inimigo não chegar a 0 PV o jogador não conseguiu destroçar o cérebro dele, mesmo acertando a jogada de ataque. Simples assim.
      Quando você faz uma jogada de ataque você não está dando um golpe, mas tentando causar um ferimento fatal que só acontece quando o monstro chega a 0 PV.
      Ao jogar AD&D o grupo deve saber e aceitar que combate não contempla simulação.

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  3. Este comentário foi removido pelo autor.

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  4. As edições antigas trazem muito mais do que fatores binários - aproveitando o termo usado na nova edição sobre "gêneros não-binários" - para o combate e para outras situações, como o Rafael citou sobre o penhasco.

    Eu adoro vídeo-games e espero um dia desenvolvê-los como profissão, mas o RPG tem que ir além de um simples acerta-dano, acerto-meio-dano, erra. Os games poderiam ser assim também, criando um leque imenso de opções, mas não é o caso discutir. Justamente por isso que tenho maior identificação com as edições antigas e os retroclones.

    Eu ainda não provei o sistema, mas Dungeon World naturalmente bebe dessa fonte. Quando você ataca, dependendo do seu sucesso, pode ser que as duas adagas cravadas no inimigo do João sejam suficiente para esmagar o crânio ou perfurar pontos vitais no pescoço, jorrando sangue para todos os lados, ou talvez só corte o ar. O efeito do ataque não fica em uma tabela do livro ou em estatísticas das regras de jogo, mas a cargo da imaginação do mestre se haverão apenas ferimentos superficiais, cicatrizes ou um traumatismo no Gnoll Warlord - e ele precise fugir, para ser encontrado mais tarde pelos aventureiros pedindo pelo golpe de misericórdia, criando até um gancho para a história através das rolagens de dado.

    Por jogar AD&D por muitos anos seguidos, eu trouxe o "vício" desse combate narrativo para as edições seguinte, quando joguei Vampiro, GURPS e claro, Old Dragon. Honestamente, não vejo forma melhor do jogar que assim. Quando eu praticava kenjutsu, lembro muito bem que às vezes você queria acertar uma parte específica do adversário, mas pelo movimento que ambos realizavam, você precisava improvisar seu golpe. Não sei explicar direito, mas é exatamente como acontece o combate no AD&D.

    Parabéns pelo post e obrigado por reforçar a ideia e as lembranças!

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