terça-feira, 5 de agosto de 2014

Discutindo D&D (2) – Entendendo e lidando com Pontos de Vida

'Qualquer coisa mais que nada significa que estou preparado para a ação, baby!'
- Pontos de vida: como entendê-los e usá-los?


(Resumo TL;DR)

. Quando D&D surgiu, não havia uma definição concreta do que seria pontos de vida. Esse termo foi discutido, e já no AD&D 1a edição a sua definição era a de 'sorte', 'habilidade', 'magia', ou qualquer outra capacidade de esquivar e evitar dano.

. Pontos de vida tem uma distinção sutil entre aqueles que são oferecidos por Classes de Personagem e por Níveis de Monstro. Os pontos de vida dos personagens costumam significar a questão de 'pontos heróicos' ligados à sorte, habilidade e magia; enquanto que os dos monstros indicam, normalmente, o tamanho, resistência e fortitude física da criatura.

. Para lidar com questões de interpretação relacionadas aos pontos de vida ('adaga no pescoço causa 1d4 de dano apenas'), os participantes devem discutir se vão lidar de forma mais realista com estas situações, ou de forma mais fantástica.

><><

Como eu discuti no post passado, quando falei sobre THAC0 e CA, existem muitas críticas e dúvidas sobre a coerência ou não do combate em D&D. Contudo, muitas vezes tais dúvidas acontecem por um desconhecimento da 'teoria', isto é, o fundamento lógico das regras do jogo. Neste post, irei abordar um outro ponto polêmico no combate em D&D: Os Pontos de vida.

No começo de D&D, lá na edição zero (ainda ligada às regras do jogo de tabuleiro Chainmail) e na 1a edição, pontos de vida eram descritos simplesmente como 'quanto de dano um personagem ou monstro podem sofrer'. Não havia uma elaboração mais precisa do que poderiam significar – pelo menos de maneira concreta no mundo de jogo – os pontos de vida. Esse termo foi sendo elaborado ao longo dos livros e, já no livro da 1a edição de AD&D, os pontos de vida estavam descritos da forma como atualmente se entende os pontos de vida em D&D:

Capa do AD&D 1a edição
Each character has a varying number of hit points,' just as monsters do. These hit points represent how much damage (actual or potential) thecharacter can withstand before being killed. A certain amount of these hit points represent the actual physical punishment which can be sustained.The remainder, a significant portion of hit points at higher levels, stands for skill, luck, and/or magical factors.

(Tirado do AD&D 1a edição original, em inglês, pg 34)

Tradução:"Cada personagem tem um número variado de pontos de vida, assim como monstros. Estes pontos de vida representam quanto dano (atual ou potencial) o personagem pode resistir antes de ser morto. Um certo número destes pontos de vida representam o verdadeiro castigo que possa ser suportado. O resto, uma porção significativa dos pontos de vida em níveis mais altos, diz respeito à habilidade, sorte e/ou fatores mágicos"


Então os pontos de vida (pvs), a partir de AD&D, começam a representar, na verdade, algo como 'pontos heróicos', exprimindo a capacidade de o personagem ignorar, absorver, escapar e sobreviver ao dano (uma maneira bastante semelhante, para quem conhece, ao sistema de Pontos Heróicos do rpg Daemon). Contudo, vale ressaltar que isso diz respeito especialmente aos pontos de vida fornecidos por Classes de Personagem.

No que diz respeito a monstros, muitas vezes os pontos de vida representam seu tamanho imenso e capacidade de absorver dano. Assim, um guerreiro humano com 50 pvs e um Gigante com 50 pvs têm formas diferentes de 'interpretar' como o dano é recebido. O dano que o guerreiro sofre pode ser interpretado como 'desviar', 'bloquear', 'aparar' o ataque; enquanto que, no caso do Gigante, provavelmente o golpe significaria realmente cortes e impactos contra seu corpo. De certa forma, o que temos aqui parece ser o caso de um mesmo nome sendo aplicado para coisas diferentes – Pontos de Vida Heróicos (sorte, habilidade, magia, destino), e Pontos de Vida Monstruosos (Tamanho, resistência, constituição alienígena). E isso até faz sentido pois, caso esse mesmo gigante com 50 pvs tenha, por exemplo, 3 níveis de guerreiro e +15 pvs, então parte dos pvs desse gigante seriam também 'sorte', 'esquiva', 'técnica', 'magia'.

Mas isso nos leva a uma grande questão: como lidar com estes 'pontos heróicos' dos personagens? Afinal, se um assassino pega o guerreiro de 50 pvs desprevenido e coloca uma faca em seu pescoço, nada impede o jogador do guerreiro dizer: 'uma faca só causa 1d4 de dano e eu tenho 50 pvs. Eu posso sofrer o ataque e depois acabar com o assassino'. Ou então, vendo os ladrões escaparem por um desfiladeiro, esse mesmo jogador poderia falar: 'Essa queda vai me causar, no máximo, 30 pvs. É mais rápido eu pular no precipício e abordar os ladrões diretamente'.

'Eu ainda tenho um sobrando'
Não existe uma resposta certa para como lidar com essas situações. No meu caso, eu proponho duas saídas. A primeira é usar de um 'bom senso de realidade'. Os pontos de vida representam uma abstração principalmente ligada ao combate. Em situações fora de combate, o bom senso prevaleceria. Uma faca no pescoço mata; beber ácido mata; pular de um precipício, caso não mate, pelo menos quebrará alguns ossos. A segunda saída é aceitar a realidade fantástica e dizer que os personagens são sobrenaturais. Da mesma forma como no anime Dragon Ball, Goku é capaz de resistir muito por causa de seu 'ki' e poderes incríveis, os personagens conseguem ser sobre-humanos por causa de magia. Assim, uma faca em seu pescoço, mesmo entrando fundo nele, não o mataria, ou então iria causar apenas um arranhão ou algo do gênero.

Em ambas as situações, é importante que haja uma discussão entre os participantes do jogo – o mestre e os jogadores – para definirem qual é a REALIDADE do jogo deles. Em meus jogos Old School, eu costumo optar pela segunda saída e aceitar os personagens como criaturas mágicas. Caso um ataque seja especialmente letal, atingindo um ponto vital – como o exemplo da adaga no pescoço – eu peço um teste de resistência contra a morte ou então causo dano extra; mas normalmente eu aceito serem os personagens criaturas 'cthulhianas', com uma biologia sobrenatural para resistir ao dano. E eu, particularmente, acho muito épica a ideia do guerreiro saltar do penhasco para cortar caminho.


Enfim, o que vocês acham disso? Como lidam com pontos de vida em seus jogos? Comentem e aumentem a discussão.

9 comentários:

  1. Os textos estão legais, você ta conseguindo mostrar pro pessoal iniciante a interpretação dessas questões que são de fato confusas no inicio.

    Eu já joguei muito ad&d e d&d no passado e gostava bastante, hoje eu não suporto mais.Quando era adolescente, era legal ter um personagem capaz de enfrentar uma horda de inimigos sozinho.
    Me sentia um personagem de dragon ball z de fato,as regras proporcionavam justamente isso.

    Hoje eu só consigo jogar sistemas mais sérios e realistas como o gurps. As regras dos sistemas old school e outros sistemas gaministas são muito infantis e por mais que inventem desculpas para justifica-las eu acho impossível engolir suas limitações,incoerências e subjetividades extremas.

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    1. Heia!

      Adicionando ao que você falou, realmente tudo se resume ao tipo de história que o grupo queira criar. Os sistemas são, no final das contas, uma mediação da conversa dos participantes direcionando para uma temática - heróica, dramática, cômica, realista etc.

      Quanto ao realismo, nunca gostei de sistemas simulacionistas/realistas. Acho-os magníficos e interessantes nas concepções de dados, mas eles me podam a imaginação e atravancam o meu mestrar. O único que mais tive sucesso foi o Daemon, talvez exatamente pelo fato deste ser tão 'abstrato' em algumas questões.

      Meus sistemas favoritos são os Old School D&D (especialmente o Lamentations of the Flame Princess); o OVA e os derivados do Apocalypse World.


      E, para terminar esse comentário, é interessante notar que, com o advento dos Retro-sistemas (os old schools), muitas coisas novas têm sido discutidas. E eu digo: é possível ter jogos bastante sérios usando sistemas como AD&D e OD&D. Eu pretendo discutir sobre isso em posts futuros. Gostarei de ouvir sua opinião quando eu falar disso.

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    2. Ok, darei minha opinião quando fizer o post. Mas fiquei curioso sobre o seu comentário de que jogos simulacionistas podam a imaginação, to aqui tentando achar alguma coisa que não dê pra fazer em gurps e não to conseguindo pensar.

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    3. Ih, essa é uma resposta muito longa e que vale um post. Na verdade, é uma ótima ideia para um post - os impactos de um sistema simulacionista: prós e contras.

      Irei postar sobre isso eventualmente, valeu pela ideia. = )

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    4. jogo AD&D até hoje, e nunca "Quando era adolescente, era legal ter um personagem capaz de enfrentar uma horda de inimigos sozinho."

      tem-se que levar em conta que nos primordios do RPG no brasil, a gente jogava como bem entendia. hj, vc com certeza tem mais bagagem para jogar da forma q vc quer, com o sistema q mais te agrada. posso te garantir q conheço muita gente q jogava "dragon ball z" seja com gurps, ad&d, storyteller ou seja o que fosse.

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  2. Muito bom os textos, gostei bastante. :D

    Acho que isso depende do mestre e não do sistema. O sistema até pode descrever os PV's, mas quem deverá utiliza-lo será o mestre.

    Não concordei muito com 'personagens mágicos', acho que um corte profundo deve rasgar a pele e dar dano por sangramento. No Old Dragon por exemplo vc só mutila um inimigo se tirar 20 no D20 e depois tirar 5 (não sei certo o numero) no D6.
    Isso tira toda realidade do jogo ao meu ver. Caiu de um penhasco gigantesco? Morreu. Perdeu um braço? Cai no chão sofrendo até alguém te salvar, ou usar cura, poção de vida não vai regenerar um braço. E tem que continuar a aventura inteira seu um braço.

    É o que eu acho. Deveriam reformular esse PV's

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  3. Gostei do post. Sempre tivesse essa questão em mente, mas nunca parei pra fazer uma reflexão de verdade sobre ser mais realista ou fantástico em relação ao PV. Acredito que o realismo torna o jogo mais bem elaborado, os personagens vão ter mais cuidado antes de executar determinadas ações por saberem que muitos danos podem ser letais, mas ainda assim não abro mão do fantástico. Sempre joguei assim e, apesar de ser muito estranho em determinadas situações (vide seu exemplo da faca no pescoço causar 1d4), não acredito que eu venha mudar. Apesar de não fazer muito sentido, é graças a esse 'fantástico' que as aventuras se tornam mais interessantes, mais dinâmicas e mais gostosas de serem jogadas.

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  4. Você poderia ter citado Tagmar que já resolveu este problema dividindo o dano em "Energia Heróica" que são os pv´s heróicos e "Energia Física" que seriam os pv´s referente a sangramento e dano direto ao "físico" do personagem. Os pontos de EF levam em conta as características físicas da raça / monstro em questão.

    Os danos são divididos. Num combate, os danos vão primeiro na EH e depois, na EF (que também soma a armadura do alvo / resistência natural da pele). Qualquer dano de quedas e ou críticos vai direto na EF. Além disso, temos as tabelas de críticos, que, caso seja um 20/20 é morte certa (exceto se houver uma diferença muito grande de peso e tamanho entre os personagens - existem tabelas especiais neste caso).

    Eu ouvi falar que o último D$D tinha resolvido este problema usando um sistema similar, onde os pontos do (s) primeiro (s) nivel (is) seriam a EF e os pontos de vida ganhos posteriormente seriam a EH.

    Baldur Headhunter.

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    1. Heia Baldur (grande Baldur's Gate, ainda farei um post sobre esse rpg) - mas sim, meu conhecimento sobre Tagmar é muito superficial, mas tinha noção dessa existência de pontos de vida em Tagmar.

      Contudo, outros sitemas tiveram a mesma pegada, como o Daemon (com Pontos Heroicos), algumas variantes de Gurps, o sistema de rpg The One Ring - entre outros. Mas esse post foi mais focado em D&D. Mesmo assim, valeu pelo comentário. Um dia eu irei abordar Tagmar aqui no blog com um post só para ele.

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