quinta-feira, 7 de agosto de 2014

Reflexões sobre o rpg, A Jornada (1) – Como tornar as cenas de viagem interessantes



Viagens, um dos pontos centrais de todas as narrativas
- Como tornar a Jornada interessante no jogo -


(Resumo TL;DR)

. Jornadas costumam ser resolvidas de maneira mecânica em rpgs, dando importância a logística dela (distância, tipo de montaria a ser usada, velocidade de movimento do grupo etc.) ao invés de focar em seus aspectos narrativos e possibilidades de cenas de interação.

. É possível criar jornadas mais engajadas fazendo com que os jogadores participem diretamente, dando aos personagens funções de exploração (caçador, batedor, vigia, guia), fazendo testes de viagem e criando cenas de lidando com as consequências que surgirem do sucesso ou falha desses testes.

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Poucas imagens na ficção são mais evocativas ou despertam mais a imaginação do que a da viagem por terras distantes, povos diferentes e ruínas esquecidas. Seja nos filmes de Star Wars, nos jogos de Final Fantasy ou nos livros do Senhor dos Anéis, a jornadas é um dos pontos centrais de toda grande história.

Contudo, na maioria dos jogos de rpgs, existe pouca ou nenhuma discussão de como tornar a jornada num ponto essencial durante uma aventura. Na maioria das vezes, a jornada se transforma apenas num cálculo mecânico de variáveis quantitativas relacionadas a uma viagem: a distância a ser percorrida, o deslocamento do grupo por dia, os mantimentos, os animais de carga etc.

No livro do mestre de AD&D 2a edição, por exemplo, existe um capítulo dedicado inteiramente para 'Tempo e Movimento', detalhando minuciosamente a movimentação por terra, por mar, uso de montaria, como cuidar dos animais de carga e até mesmo como construir um calendário. Contudo, não existe nenhuma descrição de como construir uma cena de jornada semelhante ao que vemos nas obras fantásticas. Esse tipo de conduta, com ênfase nos aspectos logísticos da jornada ao invés de nos aspectos possíveis de narrativa, se repete da mesma forma na maioria dos rpgs – seja nas versões mais novas o normal na maioria dos

Cenários fantásticos
- Uma jornada é mais que testes de sobrevivência -
O máximo que se discute é sobre sobrevivência e encontros aleatórios. No que diz respeito à sobrevivência, tudo acaba sendo resumido a algumas jogadas de dados para ver se os personagens conseguem se manter no caminho, se eles conseguem comida suficiente ou coisas do gênero. Normalmente, tais jogadas tem pouco a ver com o andamento da aventura, e funcionam mais como algo mecânico do que uma parte importante para a narrativa. Já encontros aleatórios seriam os acontecimentos inusitados que aconteceriam durante a viagem. Normalmente, estes encontros são reduzidos a combates contra monstros errantes – bem ao estilo clássico dos rpgs eletrônicos como Final Fantasy. Contudo, tabelas de encontros aleatórios podem conter também desastres naturais (chuvas, tempestades, deslizamentos de terra), encontros sociais (mercadores andarilhos), lugares (encontrar casas abandonadas, ruínas perdidas) e mesmo problemas (como falta de comida, doença, cansaço).

Com isso, podemos ver que estes dois detalhes – testes de sobrevivência e encontros aleatórios – proporcionam um pouco mais de vivacidade para os momentos de jornada durante uma aventura. Contudo, ainda não são suficientes para engajar os jogadores. As jogadas de sobrevivência são muito mecânicas, enquanto que os encontros aleatórios estão independentes das ações dos personagens, ocorrendo simplesmente por acaso.

Como então fazer para ter uma cena de viagem como vemos, por exemplo, no livro do Hobbit, quando os anões tentam montar acampamento e falham em conseguir acender uma lareira? Ou então as cenas entre Gollum, Sam e Frodo quando eles viajam em direção à Mordor, por escarpas perigosas e quedas traiçoeiras? É verdade que tais cenas poderiam ser simuladas simplesmente com interpretação, mas seria possível usar uma mecânica de jogo que pudesse auxiliar nesse processo?

Eis que entra em cena o rpg 'The one Ring' (em português, O Um Anel), um dos primeiros (e talvez o primeiro) rpg a tomar a jornada como um dos pontos centrais de uma aventura de rpg – tendo igual peso ao Combate e às jogadas de Socialização. As mecânicas do sistema buscam simular todas as viagens que lemos e vimos nos livros e filmes do Senhor dos Anéis e do Hobbit, tanto em seu aspecto logístico quanto o seu aspecto narrativo.

Falando em poucas palavras, o The One Ring exige que, antes de empreender uma jornada, o grupo veja quantos dias de viagem ela durará. A partir do número de dias se estabelece quantos 'Testes de Viagem' o grupo terá de fazer durante a jornada. Esses Testes de Viagem poderiam ser comparados aos testes de sobrevivência de outros sistemas, onde o nível de dificuldade da viagem iria variar a depender de quão perigoso e hostil for o lugar por onde os personagens estiverem passando.


Daí, sabendo quantos testes de viagem serão necessários, o grupo deve decidir quais dos personagens irão preencher as posições do grupo: caçador, batedor, vigia, guia etc. Depois de tudo acertado, os jogadores fazem os testes de viagem. Cada teste de viagem indica uma etapa da jornada, durando vários dias. A partir do resultado dos testes, o Mestre pode invocar uma complicação (caso os testes tenham sido ruins) ou até mesmo uma vantagem (caso tenha acontecido algum sucesso fenomenal nos testes).

Por exemplo, supondo que os jogadores queiram fazer uma jornada através de uma cordilheira de montanhas, a qual durará 10 dias e necessitará de 3 testes de viagem. no primeiro teste de Viagem, o caçador do grupo falhou em seu teste. Assim, o mestre pode invocar uma cena de complicação relacionada à caça. Por exemplo, o mestre pode colocar o caçador no meio de uma caçada onde ele descobre que o cervo que ele caçava estava sendo vigiado por um leão o qual, irritado com a presença do caçador, o ataca. Ou então o mestre pode dizer que parte da caça que ele caçou estava doente, o que faz com que metade do grupo tenha fortes enjoos e náuseas. Já no segundo teste de Viagem, vamos supor que o Guia tenha um sucesso crítico. O Mestre diz que o guia encontrou um atalho esquecido pelas montanhas – um túnel esquecido. Então, o narrando uma pequena sessão de exploração do grupo através desse túnel, os jogadores conseguem atravessar rapidamente o caminho e terminam a viagem muito mais rápido – não precisando rolar o 3o teste de viagem.

Viagens permitem a interação com o mundo do jogo
(Forest Bridge por Pavel Elagin)
Como pode-se ver, essa maneira de lidar com Jornada é bastante engajante para os jogadores. Diferente de um teste genérico de Sobrevivência, cada personagem acaba tendo sua função e contribuindo para o jogo. Ao invés de os eventos serem aleatórios, eles são motivados pelos tipos de testes feitos pelo grupo E para cada uma das várias posições de exploração (batedor, guia, caçador, vigia), existem vários tipos de complicações e vantagens que podem acontecer, e várias cenas que podem ser invocadas. As viagens se tornam parte integrante da aventura, e o Mestre pode caprichar na descrição do terreno e do ambiente, imergindo ainda mais os jogadores dentro do universo do jogo.

E quanto a vocês, já tinham tentado usar mecânicas como essa do The One Ring, que permitem criar cenas narrativas a partir da jornada? Espero que este post curto tenha mostrado algo de novo para alguns mestres e jogadores que não conheciam essa maneira de se lidar com a Jornada num jogo de rpg, com mecânicas que permitem criar cenas de viagem semelhantes às que vemos nas obras fantásticas. Em posts futuros sobre este assunto, irei elaborar mais detalhadamente sobre quais tipos de cenas podem ser invocadas para cada posição de exploração.

Até lá,

Valete!

2 comentários:

  1. Muito interessante essa ideia desse rpg. Nas minhas campanhas eu tento ao máximo ambientar as viagens que o grupo faz, mas confesso que não é fácil, pois demanda muita criatividade e tempo.

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    1. Realmente; até eu ler o The One Ring, também não tinha muita ideia como fazer isso. Eu pretendo discutir mais sobre viagens em próximos posts.

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